Desde 2013, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) aderiu às ações afirmativas, reservando 50% das vagas de graduação para estudantes oriundos de escolas públicas e autodeclarados negros, pardos ou indígenas. O perfil das turmas, após três anos, já deveria ser bem diferente. No entanto, cursos como a Medicina seguem compostos majoritariamente de brancos. O fato chamou atenção da Setorial de Negros e Negras da UFPel, que apurou 32 casos de fraude apenas nesse curso. A apropriação indevida das vagas fez com que o grupo encaminhasse denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) e à UFPel no dia 16 de setembro.
Mailson Santiago e Gabriel da Silva, estudantes do curso de História que compõem a Setorial, contam que a investigação se centrou na Medicina pelo fato das fraudes estarem ocorrendo sem pudor algum. A Setorial, no entanto, segue recebendo e apurando denúncias em cursos de todas as áreas do conhecimento. As denúncias, segundo apontam, seguirão sendo encaminhadas, para que haja uma reparação a todas as pessoas que ficaram de fora da Universidade em virtude da apropriação indevida do sistema de cotas. “Se a gente tem cerca de 50% de negros na sociedade, tem que ter no mínimo isso na universidade e não é o que está acontecendo”, reflete Mailson.
Ações afirmativas
As ações afirmativas surgem para amenizar as segregações de grupos historicamente violentados. No Brasil, em 2012 foi sancionado o decreto que regulamenta a Lei 12.711, tornando obrigatório que as universidades federais reservem ao menos 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em rede pública e para estudantes negros, pardos ou indígenas.
Em relação às cotas étnico-raciais, são fruto da luta do movimento negro, que move a discussão desde a década de 1960. Mailson aponta que não são “porta dos fundos”, como é comum ouvir de segmentos mais conservadores da sociedade. Elas são uma correção histórica ao passado brasileiro, país que surge através do sangue negro e do sangue indígena, populações que ainda são isoladas e colocadas à margem da sociedade. “Toda a nossa construção de Brasil, a história das empregadas domésticas, dos trabalhadores e varredores de rua, são resquícios da escravidão, as relações de trabalho são resquícios da escravidão, as relações interpessoais são resquícios da escravidão. Acabou a escravidão, mas o modus operandi, a estrutura ideológica dela continua até hoje. As ações afirmativas vêm para dar oportunidade para que as pessoas tenham acesso a estudo e melhor posição no mercado de trabalho. Elas são reparadoras”, aponta o estudante.
O professor do curso de Ciências Sociais, Marcus Spolle, segue a mesma linha, colocando que as cotas étnico-raciais são voltadas para reparação de alguém que, por sua “marca”, foi prejudicada ao longo da vida. Spolle explica que, diferente dos Estados Unidos, onde a discriminação ocorre por origem, pela linha de sangue, o preconceito no Brasil é pela aparência, o que é chamado de preconceito de “marca” pelo sociólogo Oracy Nogueira. Dessa forma, as pessoas são julgadas por sua aparência, apesar da discriminação cultural também ser evidente. Por isso, como defende Mailson, as vagas devem ser ocupadas por pessoas fenotipicamente negras. Mas há suspeitas de que não é o que vem ocorrendo na UFPel.
Verificação de autodeclaração
As vagas de cotas étnico-raciais, até o ano passado, na UFPel, eram distribuídas mediante assinatura de autodeclaração de etnia do estudante. O documento bastava. Neste ano, uma comissão mista, composta de membros da comunidade acadêmica e membros da comunidade pelotense ligados às questões étnico-raciais, passou a verificar mais de perto os ingressantes. “A autodeclaração só não basta, precisa de uma fiscalização e acho que essa comissão da UFPel veio em hora certa”, afirma Gabriel da Silva, da Setorial.
As servidoras técnico-administrativas Adriana Gomes e Elis Assis integraram a comissão de verificação de candidatos para concursos públicos. Elis diz que o trabalho é baseado no direito da população afrodescendente, para que as vagas não fossem ocupadas por pessoas que não tenham passado pelas dificuldades dessa população. Ao fazer parte da comissão, Adriana compreendeu que a proposta é atender àquelas pessoas que são de fato discriminadas, conforme comenta. A servidora também menciona o fato dela e de Elis serem duas das poucas negras entre o quadro de técnico-administrativos da UFPel. Para ela, isso vem mudando desde que as cotas foram implementadas nos concursos públicos.
O trabalho da comissão de verificação das autodeclarações consiste em analisar se o candidato, tanto à graduação quanto aos concursos públicos, preenche os requisitos necessários para a cota étnico-racial. Isso quer dizer que o fenótipo, as características físicas, deve coincidir com a declaração. Mas não só isso. Os membros da comissão questionam o candidato se sua aparência já foi motivo de discriminação. “A ação afirmativa não é só uma ação reparadora, mas uma possibilidade de acabar com a dificuldade de uma competição, sendo que algumas pessoas já entram com uma marca ou com uma dificuldade. Quando a gente questionava as pessoas, era perguntando a trajetória da vida delas, se a questão racial e a aparência interferiram na vida dele”, explica o professor Marcus Spolle, que também é membro da comissão.
Os integrantes da Setorial de Negros e Negras da UFPel defendem que essa comissão seja fortalecida para coibir as fraudes. Além disso, esperam que, a partir da denúncia, os estudantes que ocuparam as vagas indevidamente sejam desligados da Universidade, assim como processados por falsidade ideológica. As fraudes tendem a desqualificar a política de ações afirmativas, por isso é necessário que sejam checadas. A questão de que muitos negros deixaram de ingressar no ensino superior devido a essas artimanhas também motiva o grupo a defender que a validade das cotas sejam estendidas para além de 2020, prazo que foi dado às ações afirmativas. “O debate do movimento negro continua constante. Vai acabar em 2020 ou vai ficar por mais dez anos para tentar amenizar essas fraudes que estão acontecendo?”, questiona Gabriel da Silva.
Andamento da denúncia
O MPF já emitiu uma resposta à Setorial de Negros e Negras da UFPel, endossando a denúncia e, em despacho direcionado à UFPel, cobrou informações detalhadas sobre o que vem ocorrendo na instituição. A vice-reitora, Denise Gigante, no dia 22 de setembro, também emitiu um despacho, em que determina que, em relação às denúncias contidas no processo, a “comissão proceda a avaliação e declaração de etnia relativa aos alunos citados e emita parecer sobre a autodeclaração dos mesmos para que a administração possa tomar as medidas cabíveis”.
A partir disso, os alunos suspeitos de fraude devem ser chamados entre o fim de outubro e o início de novembro para uma entrevista com a comissão de verificação de autodeclarações, conforme explica Rogério Rosa, da Coordenação de Ações Afirmativas e Políticas Estudantis (CAPE) da UFPel. “Emitiremos um parecer de cada um desses estudantes e indicaremos que a coordenação de gabinete tome uma medida em relação a isso”, afirma.
Rosa, que é coordenador da CAPE e professor do curso de Antropologia, diz que a denúncia realizada pela Setorial é muito bem fundamentada e de grande importância, até porque no despacho do MPF para a Universidade, o órgão coloca que os critérios fenotípicos devem orientar a distribuição das vagas de cotas, sendo irrelevantes os argumentos de ascendência de raça para este fim. O coordenador também pontua que a ocupação das vagas por brancos fere a política de ações afirmativas, as quais “visam aproximar a universidade da sociedade brasileira, tão carente em termos econômicos e sociais e tão injusta em relação ao critério de raça, que coloca uma série de hierarquias do branco em relação ao negro e ao indígena”.
Nota de apoio
A respeito da denúncia encaminhada pela Setorial de Negros e Negras da UFPel, a ADUFPel-SSind emite nota de apoio, colocando-se como parceira para a verificação dos fatos. Abaixo, a nota elaborada:
Nota de apoio à denúncia de fraude no ingresso por cotas na UFPel
A Setorial de Negros e Negras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no dia 16 de setembro, encaminhou ao Ministério Público Federal e à reitoria da Universidade denúncia relativa às fraudes no ingresso pelo sistema de cotas na UFPel, nas modalidades L2 e L4 (candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas, de baixa renda ou não). De acordo com a Setorial, são inúmeros os casos de candidatos que preenchem a autodeclaração de forma falsa, apropriando-se das vagas.
A ADUFPel-SSind manifesta apoio à denúncia realizada, entendendo que a política de ações afirmativas é um mecanismo de reparação às populações negras e indígenas, que no curso de suas vidas seguem sofrendo com a discriminação em virtude de fenótipo. A equiparação no acesso ao ensino superior é necessária, para que os bancos acadêmicos não permaneçam ocupados apenas pelos privilegiados da sociedade.
Portanto, somos parceiros na luta para que as cotas sejam utilizadas apenas àqueles a quem são direcionadas. Endossamos que as fraudes devem ser apuradas e a UFPel investigar e atuar para tomar as devidas providências em relação aos casos que já ocorreram, bem como prevenir que novas fraudes venham a acontecer. Nesse sentido, ressaltamos a importância da comissão de verificação de autodeclarações para inibir os casos.
Assessoria ADUFPel
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