Realizado virtualmente durante a pandemia, o Kilombo Literário adotou agora o modelo híbrido.
Resgatar a ancestralidade, promover o acolhimento e fomentar o protagonismo de estudantes negros na universidade são algumas das missões do Kilombo Literário, um projeto que surgiu no Campus Carreiros em 2019 e passou a ser realizado em São Lourenço do Sul desde 2020, durante a pandemia de covid-19.
A iniciativa se insere no contexto da formação de leitores, bem como da promoção e difusão da literatura, e realiza rodas de leitura semanais, sempre valorizando a produção de autoras e autores negros. Em cada ocasião, é escolhido um conto que será lido conjuntamente entre os presentes, em formato de partilha.
Respeitando os protocolos de isolamento social, em 2020 e 2021 esses encontros aconteceram apenas virtualmente. Já neste ano, com o fim do ensino remoto, o projeto adotou um formato híbrido. As reuniões presenciais acontecem na universidade e em comunidades quilombolas e, uma vez por mês, é realizada uma roda de leitura online, considerando que com o contexto virtual a iniciativa tomou uma dimensão nacional, com participantes dos mais diversos lugares do Brasil.
O projeto
“A proposta apresenta-se estreitamente ligada à dimensão simbólica e cidadã da cultura negra no Brasil e busca retomar a ideia tradicional das rodas de contação de histórias, como círculos de cultura e convivência”, explica Rodrigo da Rosa Pereira, docente vinculado ao curso de Letras do Campus São Lourenço e proponente do projeto.
Ele relata que além da atividade de leitura propriamente dita, as rodas incluem desde conversas informais sobre as impressões de cada um dos presentes, a debates críticos sobre as temáticas retratadas nas histórias, assim como bate-papos com autores. “Promove-se, dessa forma, um diálogo com os textos, pelo encontro entre sujeitos que juntos vão construindo uma significação coletiva, a partir do compartilhamento da palavra”, afirma.
A grafia “kilombo” é originária da língua angolana kimbundo e possui o sentido de fortaleza ou povoação. Já o baobá, símbolo do logo do projeto, representa força e resistência na tradição de origem africana.
“Trata-se de um espaço onde a voz de cada pessoa importa muito”, diz Rodrigo. Para o professor, são fundamentais os relatos individuais que emergem das diferentes experiências de leitura, que trazem em si a bagagem cultural das vivências de cada participante. Nesse sentido, ele afirma que o grupo tem investido em trazer convidados para compartilhar relatos de vida, bem como incentivado as pessoas a escreverem suas próprias histórias. Em breve, a equipe busca realizar também oficinas voltadas especificamente para a produção literária.
Restrito ao público da universidade nos seis primeiros meses, após esse período o projeto foi aberto para a comunidade externa. Os organizadores convidaram, principalmente, integrantes dos quilombos da região e os novos participantes, com o tempo, foram instigados a mediarem as conversas. “Começamos a convidar essas pessoas que não tinham uma relação com a academia também para falar. A gente colocava uma pessoa da academia e uma pessoa popular, da comunidade”, explica Carina Santana Ferreira, egressa do curso de Educação do Campo e ex-bolsista do projeto.
Segundo ela, essa ação foi importante para estimular a integração da universidade com as comunidades do território. “Foi muito bacana, porque elas [meninas quilombolas] têm uma dificuldade na leitura, mas elas não tinham vergonha ali, naquele espaço, de ler no tempo delas, do jeito delas... E ai foram discutindo, e achavam interessante. Não perdiam, eram as primeiras a entrar na sala. Foi o que despertou nelas a vontade de fazer a Educação de Jovens e Adultos (Eja), o Exame Nacional Para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de entrar na universidade... abriu o horizonte delas”, conta.
O coordenador Rodrigo explica que o projeto é voltado também para pessoas não negras, à medida que um dos seus objetivos é o desenvolvimento da consciência racial crítica, seja ela de negritude ou branquitude. “De fato, o projeto é um espaço de aprendizagem para todos e a tomada de consciência da branquitude, como um dos pilares do racismo estrutural, apresenta-se como o primeiro grande passo para que sujeitos não negros assumam o seu compromisso na luta antirracista”, ressalta.
Protagonismo de estudantes
Desde o início, o Kilombo Literário é pensado e conduzido com estudantes negros assumindo a frente das ações. “O protagonismo desses estudantes é fundamental porque o projeto está diretamente vinculado aos seus lugares de fala. Então, a ideia é que cada vez mais se apropriem das rodas, tornando o projeto um verdadeiro espaço de aquilombamento”, ressalta o professor Rodrigo.
Os primeiros bolsistas foram Carina e Eder Ribeiro Fonseca. No início da pandemia, Carina relembra que enfrentava um estado depressivo, quando surgiu o convite para participar do projeto. Como ela estava sem celular, o professor Rodrigo permaneceu por semanas tentando o contato com a estudante, por meio de seus familiares.
A insistência do professor fez com que ela desse uma chance à proposta. “Eu estava em um momento que achava que eu não ia conseguir evoluir na universidade, não ia conseguir acompanhar, e ai a leitura foi me encantando. Engrenei no curso, comecei a ler, escrever e ai terminei”.
Mesmo cursando mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) atualmente, Carina segue atuando como voluntária. “Foi muito importante pra mim. É um projeto transformador, porque nessa partilha de leitura tu partilha afeto, conhecimento... tu partilha experiência…. A gente precisa estar aquilombado, porque é um negócio de nós, para nós”, enfatiza.
O impacto da iniciativa na trajetória individual é compartilhada por Mariéla Centeno, estudante do 5º semestre de Agroecologia. Desde agosto de 2021 ela é bolsista de pesquisa, mas antes disso já participava dos encontros. “Eu tinha muita dificuldade para falar, porque eu recém estava entrando na universidade, mas eu vejo que as discussões me ajudam a evoluir diariamente. A cada roda de estudos eu evoluo mais, como estudante e como pessoa, porque o projeto Kilombo Literário abrange todas as áreas da nossa vida”, afirma a estudante.
Próximo encontro
Nesta sexta-feira, 8, às 18h, o Kilombo Literário realiza uma roda de leitura virtual, com o conto "Negra Trama", de Zainne Lima da Silva. Como convidada, a assistente social e educadora popular em saúde, Elisângela Martins da Rosa Silveira, promoverá uma discussão sobre saúde mental. A atividade é aberta a toda comunidade e fornece certificação. Inscrições podem ser feitas aqui - Formulário de inscrição (google.com).
Secretaria de Comunicação - Secom | FURG
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