quarta-feira, 3 de abril de 2019

O militar e o agricultor, quem é o privilegiado?

Em tempos de debate sobre a reforma da Previdência, surgem muitos argumentos contra e a favor, especialmente de quem não quer ser afetado (ou muito afetado) nas mudanças de regras para as aposentadorias.

Um setor de forte resistência é o dos militares (Forças Armadas).

A categoria elencou uma série de motivos, em comparação com os trabalhadores da iniciativa privada como contraponto à equiparação de regras aos demais segurados/servidores: uma maneira de justificar os privilégios, como se a previdência fosse uma medida de compensação pelas desvantagens.

Neste texto vamos fazer uma comparação dos 10 pontos listados com a realidade dos agricultores, que atualmente também possuem regras diferenciadas, estes porém fortemente afetados pela reforma.

1 – O militar não pode mais fazer greves, manifestações, associar-se a sindicatos e partidos políticos.

O agricultor pode fazer greves e manifestações. Mas, se parar de trabalhar, não vai colher e vai perder mais ainda. Pode até fazer manifestações (e faz), mas isso não tem nada a ver com previdência, que não foi criada para compensar a ausência do direito de se manifestar. Ademais, essa afirmação – de que militar não pode se filiar a partidos – é relativa, pois há vários militares da reserva (ou não seria mais militar?) na condição de parlamentares, de vice e Presidente da República.

2 – É proibido falar do governo. Entrevista, só se for autorizado.

O agricultor pode falar do governo. Mas, o que falar do governo tem a ver com proteção previdenciária? O direito a se aposentar decorre do trabalho e não de uma restrição democrática. Ademais, “falar do governo” não chega a ser uma vantagem em si, já que não necessariamente traz efeitos práticos.

3 – Não tem direito à FGTS.

O agricultor não tem FGTS. Nunca teve. Nem por isso se aposenta após 35 anos de trabalho, sem idade mínima. A idade prevista é de 60 anos para homens e mulheres.

4 – Não recebe hora extra.

O agricultor trabalha, na maioria dos casos, mais que 8 horas por diária, de sol a sol. Em algumas atividades exige-se que se comece antes mesmo de o sol nascer, como a produção de leite, é árduo, desgastante e se ele não trabalha, quem mais perde é ele mesmo. Não apenas não tem direito à hora extra como não tem qualquer garantia de remuneração, nem mesmo de obter um preço bom para seus produtos de modo a pelo menos cobrir os custos de produção.

5 – Não tem direito à adicional noturno.

O agricultor não tem adicional noturno. Ninguém paga para ele trabalhar até mais tarde ou começar as 5 horas da manhã. Como dito no item anterior, não tem nem garantia de remuneração mínima, muito menos adicional.

6 – Não tem direito à periculosidade.

O agricultor trabalha com muitas ferramentas e equipamentos perigosos, com produtos químicos (risco de contaminação) e não há qualquer pagamento de adicional. Mais uma vez: adicional sobre o que, se ele não tem garantia do básico?

7 – Insalubridade somente será paga em alguns casos raríssimos.

O agricultor não tem direito à adicional, até porque sequer tem remuneração garantida. No entanto, se expõe ao sol, às intempéries e aos produtos químicos.

8 – O militar está disponível 24 horas, 7 dias por semana, sem custo.

O agricultor trabalha muitas vezes no domingo. Um exemplo é a criação de animais, em que se for necessário tem que trabalhar inclusive de noite e de madrugada. Está sempre disponível para o que tiver que ser realizado. Além disso, estar disponível é uma coisa, efetivamente ser chamado e trabalhar já é outra coisa.

9 – Não tem direito a férias.

Para a maioria dos agricultores essa palavra nem sequer faz parte do vocabulário. Primeiro, porque não tem quem cuide dos animais e faça os demais serviços necessários e segundo, porque não tem condições financeiras. Mas, ao contrário do que se afirma, o militar tem sim direito a férias.

10 – O militar pode ser enviado para qualquer lugar do Brasil, com ou sem família.

O agricultor não é mandado para “qualquer outro lugar”, mas muitos deles são “enviados” pra a cidade por falta de condições de se manterem no campo. O militar recebe valor adicional quando está em “missão”, em deslocamento e o agricultor não tem nem a garantia do básico.

O que mais diferencia o agricultor do militar é que este tem soldo, garantia de renda mínima, não corre o risco financeiro da atividade, tem estabilidade no emprego, não fica sem renda em caso de enchente, de seca, etc.

Já o agricultor, apesar de também não ter a maioria dos direitos que os militares não têm, sofre com a insegurança da atividade: clima (enchente, seca, excesso de frio ou calor), preços, custos de produção, mercado, pragas da lavoura, doenças dos animais, entre outros problemas.

Fica a pergunta: quem é o privilegiado? Se o agricultor vai ser incluído na reforma, porque o militar não? Se o agricultor, inclusive a trabalhadora rural, só vai se aposentar aos 60 anos, porque o militar se aposenta com 35 anos de atividade, sem idade mínima, e nunca com apenas um salário-mínimo, valor da aposentadoria do agricultor?

Faço um desafio: que tal viver um dia na pele de um agricultor? E depois disso voltarei a te perguntar quem realmente deveria se aposentar mais cedo.

*Jane Berwanger, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP)

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